
"E aqueles que foram
vistos dançando foram julgados insanos
por aqueles que não podiam escutar a música.”.
F. Nietzsche
Sexta-feira,
saída do metrô, estação Jardim Oceânico, 7h da noite, chovendo. Ele se maldizia
pela escolha de ter deixado o carro estacionado e ter pegado o metrô para ir ao
centro. Sua reunião não durara nem uma hora e o custo do estacionamento teria
compensado a trabalheira das baldeações. Para completar esquecera o
guarda-chuva no vagão do trem. Estava aguardando não sabe o quê, para iniciar a
corrida de uns 200 metros até o local onde seu carro está estacionado quando um
senhor grisalho, de uns 70 anos, segura seu braço embaraçosamente e lhe fala
com uma dicção perfeita e expressando-se de forma absolutamente clara e
pausada:
— Daqui a exatamente duas
semanas, numa mesma sexta-feira, viaje de carro para Nova Friburgo e vá até
Muri, ao local da entrada da estrada de terra que leva até o lugar onde você
foi mais feliz na sua vida. Você sabe onde fica. Não falte, não haverá outra
chance. Esteja lá no horário que você sabe qual será.
O Senhor acabou de falar e
desceu para a estação do metrô, passando pela roleta e desaparecendo entre os
transeuntes.
Flávio demorou alguns
segundos tentando entender o que fora aquilo. Olhou para fora e percebeu que a
chuva dera uma arrefecida e resolveu correr para seu carro. Entrou, ajeitou-se
e só então começou a perceber o quanto aquele estranho evento o tinha afetado.
Sentiu-se muito estranho. Não havia dúvidas sobre nada do que ocorrera. Para
organizar os pensamentos, resolveu refazer passo a passo os momentos desde que
descera do trem e chegara à marquise na saída da estação. Lembrou-se que aquele
Senhor não estava dentro da estação quando o abordou, estava vindo de fora na
direção de quem vai entrar no local.
Fato número dois; ele jamais
vira aquele homem na vida. O homem também não falou o nome dele. Teria aquele
Senhor o confundido com alguém?
O problema é o quê aquele
estranho falou.
O trajeto até em casa, no
Recreio dos Bandeirantes, foi feito pela praia da barra, reserva até chegar em
casa.
Quando mais pensava no que
aquele velho tinha falado mais fazia sentido. Pensou que logo aquele evento
surreal sairia de sua cabeça e assunto encerrado.
Nos dias seguintes aquele
encontro não sai de seus pensamentos e a cada dia ele ia se lembrando de um
evento específico que remontava aqueles lugares em volta de Friburgo. Até que
se lembrou que o velho havia falado especificamente de Muri...
Gelou, porque não fizera
logo a ligação, a palavra Muri dava significado a tudo que aquele senhor
falara.
Negou-se o quanto conseguiu a fechar aqueles
elos que se encaixavam perfeitamente. Mas, não havia a menor chance de alguém
além dele próprio saber sobre aquilo. Não que fosse segredo, era apenas algo
muito pessoal que ele nunca revelara a ninguém.
Aos 60 anos, não se tem
dúvidas de quando se foi feliz. Ele não tinha, haviam sido muitas as ocasiões,
temporadas longas, outras mais curtas, mas a felicidade sempre dava o ar e o
enchia com suas graças. Mas, há algum tempo perdera a paixão pela paixão. Preferia
o amor pelo amor e, nessa mudança, optara por não aceitar prêmios de consolação
e, também, não se prestar a sê-lo. Por
isso, sentia-se muito bem vivendo solteiro.
Os dias seguintes foram de
lembranças, todas cada vez mais convergentes e direcionadas pelo que o estranho
velho anunciara.
Jane já não voltava mais
diariamente aos seus pensamentos porque não mais saíra a partir do momento em
que ele aventou a possibilidade de cumprir aquela estranha missão. Mas, o que ele
deveria encontrar naquele lugar? Já o identificara como a entrada da estrada de
terra que leva ao local onde ele e Jane tiveram uma casa de campo por uns
quatro anos. Segundo o velho, ele deveria ir até lá e ficar esperando o quê?
Jane, com certeza, não seria. Ela estava casada e feliz. Há 10 anos ele não
tinha notícia alguma dela. E o que adiantaria encontrá-la à meia noite naquele
local ermo e deserto? Que coisa mais louca... sem sentido...
Ele se sentia mal toda vez
que chegava nessa parte daquele pensamento cada vez mais obsessivo. Quem era
aquele velho maluco que o deixara tão perturbado?
A verdade é que não
precisaria de nada daquilo para aumentar a confusão mental em que vivera nos
últimos anos. As consequências da pandemia da Covid-19 só não foram mais graves
e profundas porque ele ainda estava vivo. Mas, não tinha certeza se isso havia
sido um bem ou um mal a mais. A vida não o atraía o suficiente para esperar ou
desejar qualquer coisa dela. Entendia
perfeitamente como Nietzsche deve ter se sentido após anos mergulhando nas
profundezas da alma humana. Entretanto, discordava do alemão, o nada era
plenamente suportável após o que experimentara. Na verdade, havia minutos tão
suportáveis onde o simples fato de não haver dor física ou mental já lhe gerava
prazer. Não é agradável se dar conta de que o nada é o melhor estado em que
poderemos nos encontrar. E, o seu nada significava, também, sem ninguém.
Impressiona como um ser
humano é capaz de ir reduzindo suas necessidades de sobrevivência a ponto de
precisar de muito pouco e de ninguém mais. Mas, esse esvaziamento externo cria
um correspondente vazio interno. As coisas vão perdendo o valor, a importância
e o sentido. Pouco a pouco não fazem mais falta. As profundezas humanas são
traiçoeiras e solitárias, quem as frequenta com assiduidade perde o contato com
o mundo que vive na superfície.
Não tinha mais dúvida alguma
de que iria subir a serra até o local onde aquele senhor lhe disse que deveria
estar.
A NOITE
Saiu do elevador direto na
garagem, escura e úmida como sempre. Cheiro de garagem, não é ruim, mas também
não é bom. É cheiro de garagem. Pareado o smartphone, play na playlist especial
para essa viagem que ele não faz há muito tempo.
Nova Friburgo tem um grande
valor sentimental para ele. Além das melhores lembranças, sempre teve uma
simpatia gratuita por aquela cidade e suas redondezas, Muri, Lumiar e São Pedro
da Serra. O céu de inverno e das frias manhãs de sol esbranquiçado é de um azul
forte, definitivo. A ele, fala à alma.
Tinha consciência de que se
alguém soubesse o verdadeiro motivo da viagem naquele dia e naquela hora,
duvidariam de sua sanidade. Ele próprio vinha duvidando seriamente desde que
encontrara aquele senhor na saída da estação do metrô há duas semanas. Às
vezes, se perguntava se aquele encontro teria realmente acontecido.
Quando entra na ponte
Rio-Niterói o trânsito já não sofre reflexo algum do rush das sextas-feiras e
corre livre como nas viagens com Jane. O banco do carona é dela, naquele
momento ele percebe que nunca deixara de ser.
Não consegue descrever o que
está sentindo. Tantos anos passados e a sensação do carro correndo na ponte é
improvavelmente agradável... Como pode viver os últimos anos se arrastando na vida...
como é bom sentir alguma coisa, como é bom lembrar da Jane. Quase consegue
conferir de novo algum sentido a palavra felicidade. Naquele momento pode, ao
menos, imaginá-la.
Como é gostoso subir a serra
à noite com esse céu completamente iluminado pela lua cheia. É mágico.
Para ele não importava mais
o que haveria no fim daquela viagem, o trajeto em si já lhe tirara todo o
torpor mórbido que acompanhava seus dias.
Mas, alguma coisa muito
estranha ocorrera e ainda estava acontecendo naquela noite. Sente que a cada
curva suas energias e pensamentos se excitam progressivamente e de uma maneira
inexplicável para quem estivera tão próximo do suicídio. Teve medo para onde
aquela estrada o estaria levando. Para onde sua loucura o levaria naquela
noite?
A depressão, a infelicidade
profunda e a desesperança poderiam ter fabricado aquele velho na estação do
metrô? Poderiam. Afinal, o que ele lhe falara não faria sentido para mais
ninguém a não ser ele mesmo. O que aumentava a chance de ser produto de sua
própria mente. Ele era teimoso e já que chegara até ali, iria até o fim. E, se
fosse loucura, pelo menos não haveria ninguém para testemunhar seu surto.
Quando passa, o posto da
polícia rodoviária está quase encoberto pela neblina sempre presente naquele
horário. Às 2h da manhã o local está completamente deserto.
Pouco depois de uma grande
curva à esquerda ele vislumbra a entrada de terra no mesmo lado, pouco antes da
entrada para Lumiar. É ali.
Ele para no largo onde a
estrada de terra que leva até a Casa Azul começa. Quando desliga o carro sente
seu coração acelerar ainda mais. Não tem mais idade para suportar aquele ritmo
cardíaco por muito tempo. Salta do carro buscando um pouco mais de ar e para
esticar as pernas depois da viagem.
O local está completamente
deserto, com era de se esperar, ali não há nada. Volta para o carro e deita o
banco, tentando compassar a respiração e controlar aquelas descargas de
adrenalina. O suor é tão intenso que encharca sua camisa, suas extremidades estão
frias e azuladas. Uma dor aguda percorre todo seu braço esquerdo, a dor no
ombro esquerdo aumenta e paralisa seu braço. Faz um esforço e consegue alcançar
os dois comprimidos de diazepam que restam na cartela. Toma-os e deita no banco
reclinado. Após um pico de dor aguda no ombro, que reflete intensamente no
peito, sente um relaxamento profundo e apaga.
De repente, acorda
assustado, ainda no mesmo local, e vê um vulto saindo da pequena estrada
caminhando em sua direção. É Jane sorrindo.
Nada mais importa.